terça-feira, 31 de março de 2009

LISBOA

Ignorância de Lisboa.
A cidade evidente, entre Santa Apolónia e a Avenida da Liberdade, passando pela Baixa de lojas quase modestas e águas-furtadas abandonadas (a chuva entra pelos telhados e pelas juntas das tiras de plástico), a Lisboa do Chiado decadente, asfixiado pela nostalgia e subitamente doirado, atmosfera corroída pela poluição, pelo pó, pelo fumo dos restaurantes de rápidos almoços, Lisboa das esplanadas entre lagos de recorte romântico e filas de automóveis – essa imagem evidente de Lisboa, a do visitante apressado, o que passa em direcção a outra cidade, cumprindo estranhos rituais que o centralismo explica – engana.
Se algum acidente obriga a demora, então a Geografia pega-nos pela mão e a História conduz-nos por corredores de penumbra, com um céu como um tecto, corredores atravessados por abertos em qualquer direcção, onde a luz entra como uma bofetada, e as súbitas visões cubistas, fragmentadas e densas, de detalhe agudo como fio de navalha – ou as massas compactas de grandes estruturas, os conventos, os palácios, algumas cúpulas ou agulhas que procuram o céu de Lisboa. E logo em movimento ascendente, ou do fundo de alguma depressão, o que os rodeia ganha largo respiro e aparece o Tejo, o Castelo, massas de verdura que os números de análise dificilmente revelam.

Passear em Lisboa: movimento ritmado por um pulsar contínuo e ardente – expansão, contracção – como o bater de um coração com olhos que vêem longe ou recebem o sopro protector dos muros de reboco fissurado, riscado pelo encosto, de cores não intensas, transparentes, misturadas semi-cerrando os olhos, cores em deslocamento, conduzindo a outra cota e a outra impressão.
Às vezes Lisboa recorda Veneza, junto ao rio, onde o terreno é horizontal, aqueles poentes longos e doirados, rosa, turquesa, névoa; ou a nitidez do fundo de um quadro flamengo e a minuciosa formação de cabeleira de um santo ou de um comerciante ou de uma Eva nua. Os telhados são alçados. Os edifícios de escritório desalinham-se, a paisagem ordena-os inexplicavelmente, não tanto como no Rio de Janeiro. Há algo de alemão, mas nunca áspero, nos bairros económicos do Estado Novo, delgadas bandas entre o verde dos pátios. O ornato como as pedras de calcário, ou de poluição. Desapareceram as velas brancas do Mar da Palha. Outros barcos o atravessam. Grossas colunas de gente apressada atravessam as passadeiras do Terreiro do Paço, somem-se entre carros estacionados, saídas do Cacilheiro, pisam as calçadas de Lisboa, em branco e preto, com desenhos supostamente antigos, calçadas que o hábil golpe de martelo aconchega, calçadas que mantêm o respiro do solo de Lisboa, tão pisado, aterrado, sugerindo civilizações desaparecidas.
Esta viela tem as janelas que gostaria de desenhar mas não posso, feitas por mão de projecto cortadas, tocos de que algo vai nascer. Ao longo da margem do rio, em bolsas recém-formadas, surgem portas nova-iorquinas em segunda mão, multidões na rua como em Madrid, turistas espanhóis e brasileiros, entre gente alheia ao bulício, que recolhe às 7:30 e parte às 7h30, enchendo as estações do metropolitano carregadas de azulejos e de pedintes. A grande massa do Centro Cultural acena aos seus pares – os conventos e os palácios – espera o rio e o momento de se diluir no casario, suporta o perfil móvel das arquitecturas. Cada novo traço remete inevitavelmente a um traço antigo. Passa o taxista de Tabucchi.

Lisboa apaga a outra cidade de que não falo e de que vive a primeira. Nas lojas emolduradas a calcário carregado de cicatrizes, ou nas periferias desoladas entre colinas e sobre colinas, persiste um apetite irreprimível de regeneração, o impulso dos cataclismos e da persistência, das populações marginadas, imigradas, adaptadas por uma alegria intensa de viver.

O ondulado das colinas desdobra-se como um tapete que alguém estende num gesto largo, desenho denso, pedraria de que emergem grandes volumes de uma simplicidade solene, grandes terraços, muros de suporte revestidos a gladíola; desdobra-se, percorre o rio, como em Travelling de respiração suspensa. O olhar perde-se no mar, a linha do horizonte estremece.

ÁLVARO SIZA
Porto, 1994

domingo, 29 de março de 2009

Primeiro Amor - BECKETT

Um homem conta a sua história. Uma história de amor? Sim, e não só. Entre o cemitério e um banco de jardim, entre altas urtigas e bostas de vaca, entre uma casa e outra casa ele relata como as coisas realmente se passaram entre ele e Lulu. Ou será Ana? “Mas que importância tem o modo como as coisas se passam a partir do momento em que se passam.” A história é sempre a mesma. Desde o princípio do verbo que tem sido assim. A ironia da vida. As adversidades do amor. A inadiável morte. Nunca houve outros assuntos. Nunca haverá outra história. Seja deste ou de outro homem. Os adereços mudam mas o assunto não. Sempre. A vida. O amor. A morte. O medo. O riso. O desespero. A perversidade. A repetição.

Pelo meio do bar da Trindade, brilhante representação de Rui Cabrita e encenação de Sandro William Junqueira!

Teatro é a verdade escondida

Teatro não pode ser apenas um evento - é forma de vida! Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões, tudo o que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!
Não só casamentos e funerais são espetáculos, mas também os rituais quotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática – tudo é teatro.

Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espectáculos da vida diária onde os actores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, o palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver, tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana.

Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!

AUGUSTO BOAL


sábado, 7 de março de 2009

A mao no arado

(...)

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

RUY BELO

domingo, 1 de março de 2009

O metro

Ele movimentava-se por entre as pessoas de modo imponente, com suas botas altas e passos pesados, ao ritmo dos quais dançava a sua longa capa negra. Caminhava com o olhar fito no horizonte, sem olhar os que o rodeavam, quando estes apenas o fitavam a ele com um olhar pensativo de recusa e espanto. Porque se veste como uma bruxa? deveriam pensar eles. Porque tem a cara branca e nela desenhada um risco de sangue a escorrer-lhe pelo canto da boca?

Num lugar como o metro, túnel escuro e sujo onde todos se cruzam sem se olharem, esta personagem conseguia a diferença, num espectáculo urbano que concentrava em si todos os olhares, antagónico ao seu pseudo lema de luto e solidão.

O ruído do metro a aproximar-se cortou repentinamente o silêncio cortante daquele espaço insípido e por momentos criou a sensação de que aquele vazio entre as pessoas, pesado há segundos atrás, não passara de uma ilusão de solidão.

Segui o mesmo caminho que a personagem até à porta em que entrámos e fitei-lhe o olhar, como que lhe dizendo não tenho medo de ti.

Entrámos. Sentámo-nos.

A música que eu ouvia no mp3, apenas me permitia observar os gestos. Gestos baloiçantes de pessoas embaladas pelo movimento do metro. Olhares silenciosos que se cruzavam uns com os outros, ocos ou repletos de questões.

À frente do gótico sentara-se um rapaz dos seus 8 anos que o olhava subtilmente, já com os apetrechos de um adulto, que sabe olhar sem expressão para esconder o que lhe vai na alma, como mandam os bons mandamentos da boa educação, mas ainda com um pouco de espanto e curiosidade a gritar por vezes mais alto. Seria ele um vampiro, questionava-se de certo. O sangue a escolher-lhe pelo canto da boca… É melhor não olhar para ele, senão ainda sou a próxima vítima!

Alguns bancos mais à frente um homem olhava fixamente para mim. Recostado no banco a olhar por entre o seu chapéu de cowbow, era do tipo de pessoa com quem não se pode comunicar através do olhar, com estrelas de testosterona a saltar-lhe pelos olhos.

Até que cruzei o olhar com a única pessoa que ia perto de mim, no banco em frente do lado esquerdo. Um olhar escuro, doce e triste. Perdido. Um cruzamento entre indiano e japonês, brasileiro talvez. Agarrava a cabeça com as mãos, tapando as orelhas como que não querendo ouvir eu estava a ouvir, alguém a gritar “Anytime you need love baby I'm on your side.
Just let me be the one I can make it alright. I can make it alright”. Compreendo-te. Quantas pessoas já não to disseram antes? Começas a chorar. Olho para ti e escondes-te atrás da gola do casaco. Limpas as lágrimas com ela. Estás bem? quero-te perguntar. Mas não pergunto, sou como todas as outras pessoas que viajam neste metro, fechadas dentro do seu próprio silêncio, a quem o egoísmo e a vergonha comandam a vida. Parecem haver linhas que não se podem transpor. Muros atrás dos quais cada um de nós vive e às portas dos quais não se pode ousar bater. Todos tão perto mas tão incrivelmente sós.

Próxima estação: Marquês de Pombal.

O gótico levanta-se e o voo curvado da sua longa capa negra bate-me na perna. O metro pára. O gótico sai.

O rapaz intrigado enche a mãe com perguntas e esta ri-se olhando para mim, como se eu estivesse a ouvir a conversa.
O cowbow adormeceu. Acordou a sorrir, ainda a olhar para mim.

O indiano continua a chorar. É tão belo. Fascinam-me as pessoas que possuem um tanto de tantas terras. Interrogo-me se faria alguma diferença eu falar com ele. Algo na vida dele iria mudar? Por segundos que fosse? Ficarei sem saber.

Próxima estação: Baixa-Chiado.

Ele levanta-se, eu levanto-me, o rapaz e mãe levantam-se, todos os outros se levantam.

Vamos para sentidos opostos, porém ainda apenas com dois carris a separar-nos, enquanto esperamos a próxima carruagem. Ainda assim o nosso olhar continua a cruzar-se. Talvez tivesses mesmo tanto para dizer… para gritar. E apenas precisasses de alguém para o fazer. Mas o meu metro chegou, as portas abriram-se, eu entrei, as portas fecharam-se e o metro arrancou. E eu fiquei a ver-te desaparecer ao longe, como todas as outras pessoas que se cruzam connosco todos os dias.

Incrivelmente sós.
ZARA